Realizar os Blocos I e II do Programa Avançado de Criação em Artes Performativas (PACAP 5), com curadoria de João Fiadeiro em colaboração com Márcia Lança, Carolina Campos e Daniel Pizamiglio, foi uma experiência única frente aos acontecimentos dos anos 2022/21. Antes mesmo da pandemia eclodir e afetar ainda mais o contexto social e sanitário do Brasil, agravado pelo cenário político, Carolina Canteli participou no início de Março de 2021 do COMO NÃO SABER JUNTOS: O QUE FAZER DAQUI PARA TRÁS_IN SITU, dentro da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nessa altura, a artista encontrou-se com questões fundamentais do trabalho de João Fiadeiro acerca do estudo do tempo, "mergulhar na dobra de um acontecimento", re-parar os hábitos e tomadas de decisão no campo da vida e das criações artísticas (para não se repetir sem diferença), entender a ação no tempo como um corte irregular numa fita de moebius e não uma ação regular frente ao tempo cronológico e linear.
Esses e tantos outros afetos, tiveram um efeito de faísca, que a incendiou num processo de combustão lenta e irreversível, de forma a fazê-la relembrar e re-parar mais uma vez no seu desejo de não somente produzir trabalhos em coletivo ou solos, mas perguntar-se: "Como eu faço o que faço?", "Como eu aprendo?" e ainda "Como quero seguir o meu fazer artístico?". Diante de tais questões, aproveitou da oportunidade em realizar a atividade na MITsp, além de participar da performance O que Fazer Daqui para Trás in situ, mas não findou seu interesse aí. Uma vez interessada em seguir investigando essas questões e sabendo da oportunidade em realizar o PACAP 5, Carolina realizou o processo seletivo para estar entre o grupo de artistas do programa e, uma vez aceita para realizar os Blocos I e II deste curso, se moveu para Portugal a fim de viver nesse tempo-fresta de investigação.
foto: Carolina Martins
Já no Bloco I: Estudo, experimentação e prática da Composição em Tempo Real, realizou mais uma vez a performance O que fazer daqui para trás_versão expandida re-conhecendo o dispositivo da exaustão ao correr nas ruas, agora de Lisboa, o quanto o afeto dela está para esse instante-acontecimento que está sempre em iminência e em tecitura na malha urbana. Sendo a performance sobre partilhar com o público uma experiência singular tida na rua a partir de algo visto, sentido ou imaginado, Carolina aproveitou da ocasião para aprofundar um de seus maiores campos de estudo, que é a sobreposição e por vezes, a quase invisível linha, entre o ato artístico e a vida cotidiana. Carolina, que em sua trajetória com o Grupo MEIO divide a direção deste, mescla os estudos de arquitetura e urbanismo, sociologia e coreografia para pensar intervenções urbanas; é atraída pela noção de performance para além de sua apreensão primeira, de fruição artística, para quem sabe ganhar uma segunda, terceira ou quarta camada, que é um gesto coreográfico enquanto gerador de perguntas, memórias e paisagens outras, que não as vigentes do fluxo mais comum da apatia e multidispersa atenção cotidiana. Quais são os modos que vivemos e quais seriam outras maneiras possíveis de existir em espaço público?
Ainda no Bloco I, também realizou o reenactment da performance EXISTÊNCIA (R|EXISTÊNCIA) no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, um projecto de João Fiadeiro que estreou no Centro Georges Pompidou em Paris em 2002, onde se praticou Composição em Tempo Real (C.T.R.) ao vivo, colocando os performers e público num lugar de experiência radical com o presente e com a ideia de não-saber juntos. Nessa ocasião, o grupo da formação dividiu-se em três (Dispositivos A, B e C), sendo o de Carolina o B, com orientação e direção de Daniel Pizamiglio, sendo um momento marcante para a artista, pois foi com esse grupo que seguiu ainda no ano de 2022 a investigação não somente da aplicação mais tradicional da C.T.R, mas o estudo deste implicado com referências outras, como por exemplo, incluindo saberes advindos da prática/estudo com Lisa Nelson e Emma Bigé, duas artistas convidadas no curso.
foto: Joana Linda
Com Lisa Nelson e seus tunning scores, o grupo se sentiu incentivado a realizar sua própria partitura, estudando feitura de gráficos e pensamentos acerca do que poderia ser uma grafia do acontecimento presente a partir de gestos maiores (major) e menores (minor) e como estes são importantes de não somente serem realizados como testemunhados (be witness), dentro do campo de compor com o que está acontecendo no presente e até mesmo de perceber enquanto estudo onde começa (begin) e onde termina (end) uma ação. E no caso da influência de Emma Bigé, muito da sua contribuição teórico-prática e leitura de textos como The Carrier Bag Theory of Fiction, de Ursula K. Le Guin esteve para/com o grupo para pensar como ações de "heroísmo" ou hierarquização da atenção num único ponto/acontecimento, podem ser redistribuídas, pensando numa performatividade cuja ética seja multidirecional e não de um único vetor de atenção/inteligência. Para isso o grupo se debruçou sobre o fazer performance com as ideias de "ecologia da atenção", "colocar os heróis na sacola", testemunhar eventos maiores e menores com a mesma importância, criar a partir de uma zona ecótona, cuja singularidades de cada corpo-coisa se manifesta, criando um ecossistema mais diverso e que faz sobreviver as espécies, sem que seja preciso criar fronteiras duras.
A partir daí, o grupo voltou a se encontrar em diversos momentos, o qual passou a nomear esse estudo de Dispositivo B / Madrugada, somando assim dois interesses: continuar investigando metodologias de criação em tempo real unido à teoria queer e tunning scores, além de também pensar em dramaturgias de criação, cujo foco é dar a ver um espaço cênico que convoque um "entre" lugar, um espaço performático que se confunde com outros eventos da vida e manifestações paisagísticas, um exercício de indefinição entre performer/público, atuar/ser atuado. Para tal, Carolina junto aos artistas do coletivo seguiu em investigação, buscando modos de partilhar o trabalho performático de Dispositivo B / Madrugada, ora o fazendo em situações de trabalho cênico, ora pensando em formas de compartilhamento, como em workshops, happenings e até mesmo publicação, como foi o caso de ter participado de conversas com o poeta Miguel Teles acerca deste estudo, o que culminou na publicação de '10 NOTAS PARA UM DISPOSITIVO B - MADRUGADA', da edições cifose. Esta publicação foi lançada acompanhada de uma ativação cênica em que Carolina e parte do coletivo apresentaram 15 minutos de performance-leitura da publicação no âmbito da “A PELE NÓMADA: 3O anos dos LAB/Projectos em Movimento”, evento comemorativo organizado por João Fiadeiro e Fórum Dança no Teatro Malaposta em Janeiro de 2023.
foto: Pedro Pina
Neste mesmo evento, Carolina também desenvolveu o segundo trabalho do que hoje denomina TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS, projeto metodológico da artista que engloba três criações que se conectam como modos de relação dela com a cidade e na relação entre evento performático e trivial, sociabilidade e urbanismo, gesto e poesia. Essa tríade é composta de: mover a dura certeza, uma performance-caminhada + aquilo que sei e não sei sobre mover a dura certeza, uma performance-pergunta para a performance-caminhada + plano-trajeto, o filme daquilo que é o modo operativo da performance-caminhada, que é o espelhar os acontecimentos da/na rua. Este último, ainda a se fazer, a artista criará um filme-dança não como um plano-sequência, mas um plano-trajeto.
Esse terreno de criação que também surgiu como embrião no Bloco II do PACAP 5, especialmente o mover a dura certeza idealizado inicialmente como parte do processo investigativo chamado delírio, desvias resposta-criação ao Bloco II da formação de Carolina Canteli no PACAP 5 junto a Ves Teresa e Leo Shamah, hoje ganha outros contextos de realização, para que a pesquisa da artista possa ganhar outras colaborações, atualizando o desejo em investigar e interpenetrar as suas próprias criações. Tendo já participado do evento BORA e também com o aquilo que sei e não sei sobre mover a dura certeza no evento "A PELE NÓMADA, Carolina segue em busca de contextos para essa investigação. Mover as certezas do cotidiano e deslocar-se percebendo os fractais que compõem um todo. Tatear com a visão, manusear o olhar. Repensar a cidade e os campos de sociabilidade a partir de uma ação não violenta em termos ambientais, sociais e urbanísticos. Recortar a paisagem, movê-la de lugar, sem extrair nada, sem despejar ninguém, sem demolir prédios ou demandar um único jeito de ver, mas ainda assim, mover olhares, lugares e sua gente. Provocar encantamento pela multiplicação e sobreposição da imagem das coisas. Gerar mais questões e menos dúvidas.
foto: Carolina Martins